quarta-feira, 27 de março de 2013

A vida a bordo de uma embarcação portuguesa

            “A epopéia portuguesa, retratada por Camões em Os Lusíadas, é a exaltação do povo português, seu espírito aventureiro e suas conquistas. As descobertas são os reflexos da persistência e da vontade, que inicialmente só pretendia chegar as Índias para comercializar especiarias e ouro, e evangelizar os infiéis, mas que acabou mudando o mundo. Exaltados são seus heróis, como Vasco da Gama, mais outros tiveram papel fundamental e muitas vezes nem são tão lembrados. Vamos conhecer como era a vida nas embarcações portuguesas, suas angústias, incertezas, e o modo sofrido com o que se desbravaram os mares, desconstruíram mitos e impulsionaram a formação do mundo moderno.” 
Boa leitura!

 
A partida de Vasco da Gama, Alfredo Roque Gameiro, 1947 , Biblioteca Nacional de Portugal

A Viagem

       Lisboa, fins do século XV, foz do Rio Tejo. Vasco da Gama parte em direção ao atlântico Sul com o objetivo final de chegar as Índias. Como ele muitos outros de lá partiam, e em mente com uma missão: “conhecer novos mundos”, que ás vezes não passavam de utopias. Porém o desconhecido, em breve ia ser desnudado pela obstinação portuguesa. Um projeto de expansão de uma jovem e vibrante Nação.
     As viagens tinham duração média de seis meses, porém algumas expedições ficavam em torno de um ano e meio no mar se fosse necessário. As condições de navegação mudavam continuamente, variando do calor tórrido do Trópico de Câncer ao frio do extremo sul, na região do Cabo das Tormentas, rebatizado de Cabo da Boa Esperança. 
       Na famosa evocação do "Mar Português" de Fernando Pessoa , o poeta recorda o verdadeiro preço da expansão marítima.

"Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu"

                                       (Fernando Pessoa , Mensagem, 1934)

      De alto risco, as expedições sofriam todo tipo de imprevistos no mar: tempestades, calmarias, motins e trágicos náufragos, além da fome e das doenças presentes na tripulação, que serão comentadas posteriormente. Por vezes a água da chuva invadia a embarcação. Calcula-se que 40% dos navios sequer chegavam aos seus destinos, sendo que na época os naufrágios se tornaram a principal causa de morte em Portugal.

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Os marujos

        No imaginário da época, o marinheiro era visto de forma geral, como um indivíduo da pior espécie. Segundo relatos da época, entre os tripulantes dos navios portugueses figurava todo tipo de gente: adúlteros, malsins, alcoviteiros, ladrões, vadios e desobrigados, homens que matavam por dinheiro. Nas embarcações também se faziam presentes condenados por crimes diversos, que trocavam suas respectivas penas - muitas das vezes mortes por decapitação e/ou enforcamento – pelos serviços no mar.
       Além desses, uma parcela era formada por crianças, que em certas viagens poderia corresponder a 10% da tripulação. Alistadas pelos pais, os quais recebiam seus soldos, as crianças faziam os considerados “piores trabalhos da viagem”, como costurar as velas, limpar os excrementos, entre vários outros, sem contar nos constantes abusos sexuais sofridos nos porões dos navios. Por fim, no período de expansão em direção ao cabo das Tormentas, começa-se a observar a presença de escravos negros negociados no litoral africano, o que anos mais tarde se tornaria uma constante na colônia portuguesa na América: o território que viria a se chamar Brasil. Grande parte da tripulação era de origem pobre, por vezes não tendo nem vestes apropriadas. Muitos, de personalidade rude, se lançavam na empreita descontentes e iludidos com a possibilidade de aventuras e enriquecimento.

A religião a bordo

“Se queres aprender a orar, entra no mar”

       Cercada de mitos, lendas, buscas por reinos perdidos e com a cara de uma nova cruzada, de espírito evangelizador e ao mesmo tempo mercantil, as navegações portuguesas evidenciavam a influência e o enorme poder que a Igreja detinha sob a sociedade portuguesa de fins do século XV. O provérbio acima confirma a incerteza e a evocação da fé causada pela aventura marítima. Missas, terços e procissões eram comuns na viagem, e se tornaram mais freqüentes ainda após a contrarreforma católica e a criação da Companhia dos Jesuítas. Na verdade havia um certo incentivo a manutenção de uma vida religiosa a bordo, visto que os perigos e a possibilidade de morte na viagem eram uma realidade
      As tradições da Igreja eram cumpridas quase que a risca. Sextas-Feiras de abstinência, suspensão da carne e consumo de peixe. Há relatos de procissões de fé e de solenidades em que ocorria a cerimônia do “lava-pés”. As confissões também faziam parte do cotidiano dos marujos. Ou seja, por missas, confissões, procissões entre outras práticas católicas, esses missionários representavam um alento espiritual aos tripulantes. 

Alimentação

     A alimentação certamente consistia no maior problema das longas viagens marítimas. Tudo começava antes da partida, já que os navios eram abastecidos de forma insuficiente pelo Armazém Real, observando que a falta de gêneros era uma constante em Portugal. Daí mais um dos fatores que impulsionariam a expansão: o controle de novas regiões produtoras de alimentos. Escassos e armazenados nos porões úmidos dos navios, estragavam já no início da viagem e seu consumo associado aos péssimos hábitos higiênicos eram motivos de muitas perdas na tripulação.
       Entre os mantimentos levados na viagem estavam: biscoitos, carne salgada,  peixe seco (principalmente bacalhau salgado), banha, lentilhas, arroz, favas, cebolas, alho, sal, azeite, vinagre, mel, passas, trigo, vinho tinto e água, sendo que alguns alimentos eram mantidos em barricadas de sal com a finalidade de conservá-los por longos períodos. As embarcações também transportavam animais vivos, tais como: galinha, coelho, carneiros, entre outros. Para o preparo dos alimentos, os navios costumavam carregar 2 ou 3 fogões.
       O acesso aos mantimentos era rigidamente controlado, seja pelo “despenseiro”, seja pelo Capitão que os distribuíam as tripulantes conforme o posto: os oficiais ficavam com os suprimentos em melhor estado, enquanto os marinheiros pobres eram obrigados a comer biscoito podre com baratas e com bolor fedorento e fétido, entre outros elementos em estado acelerado de decomposição. Nas calmarias, quando a nau poderia ficar horas ou dias sem se mover, sob o calor tórrido dos trópicos, os marinheiros famintos ingeriam de tudo: sola de sapatos, couro dos baús, papéis, biscoitos repletos de larvas de insetos, ratos, animais mortos, e até mesmo carne humana. Muitos matavam a sede com própria urina, enquanto outros preferiam o suicídio.
     A qualidade da água era também muito comprometida, pois geralmente eram poucas ou nenhuma escala para o reabastecimento. Á partir da conquista de novas terras e contatos com outras culturas, pouco a pouco a alimentação nos navios foram mudando, graças á assimilação de novos gêneros e hábitos, porém o processo foi lento.

Condições de Higiene 

      As condições de higiene a bordo eram as piores possíveis, e o espaço para acomodação da tripulação era muito restrito. Nas viagens eram levadas água-de-flor e ervas aromáticas com a intenção de disfarçar os odores nauseantes. A má higiene costumava contaminar os alimentos e a água, e nas pessoas e nos alimentos proliferavam todos os tipos de parasitas: piolhos, pulgas e percevejos, além de ratos e baratas. No ambiente o banho era impensável e impossível devido á insuficiência de água, utilizada somente no preparo de alimentos e na hidratação, e não havia banheiros nos navios sendo que os viajantes recorriam a pequenos assentos pendurados sobre a amurada dos navios. Ninguém se lavava, pois o banho era considerado nocivo à saúde. Confinados em cubículos, passageiros satisfaziam as necessidades fisiológicas, vomitavam ou escarravam próximos de quem comia - quando não sobre - o que era considerado comum a bordo da embarcação.
Doenças
     A fome crônica e a debilidade física colaboravam para a morte de uma parcela significativa de marinheiros, somando-se ao fato que a falta de higiene básica, contribuía para transmissão de agentes patológicos de vários tipos. Casos de febres altas e delírios são comumente relatados nos diários de bordos da época (na maioria das vezes decorriam da ingestão de carnes muito salgadas e podres, regadas á vinhos avinagrados).
       Os longos períodos no mar, privavam o acesso dos marinheiros aos alimentos que continham vitaminas. A vitamina C era ausente ou insuficiente na alimentação, e os marinheiros ficavam doentes já nos primeiros meses da viagem: as gengivas inflamavam, e iam “apodrecendo” o que produzia um hálito muito desagradável. Os dentes caiam, apareciam feridas e hemorragias nas mucosas e peles, logo se transformando em um caso de anemia, e o posteriormente viam a falecer. Tal enfermidade é conhecida como escorbuto. Conhecida como “mal dos marinheiros” era a doença mais temida e repulsiva no cotidiano dos marujos, causando alta mortalidade. A falta de informação sobre as causas da doença permaneceu até meados de 1653 quando James Lind, médico naval escocês observou e constatou que o consumo de laranjas, limões e limas evitava o escorbuto.
      Sobre a doença, Luís Vaz de Camões, retratou-a em Os Lusíadas:

"E foi que de doença crua e feia,
 A mais que eu nunca vi, desampararam
Muitos a vida, e em terra estranha e alheia
Os ossos para sempre sepultaram.
Quem haverá que sem o ver o creia?
Que tão disformemente ali lhe incharam
As gengivas na boca, que crecia
A carne e juntamente apodrecia."
                                                    (Canto V)

     Outra enfermidade comum era a beribéri, uma doença causada pela falta da vitamina B1 ou tiamina na alimentação, que causava extrema fraqueza, problemas digestivos e atrofia progressiva dos nervos longos, dos músculos da perna e dos braços e edema (fruto da insuficiência cardíaca). Não tão comuns, mas registradas em alguns relatos, encontram-se casos de peste, cólera, paludismo, febre tifóide. Havia também inúmeros casos de depressão e outras doenças psiquiátricas.

Distrações na monótona vida marítima

     Costuma-se acreditar - equivocadamente - que as viagens portuguesas rumo ao desconhecido eram cercadas de aventuras e emoções, porém, essas na verdade eram  monótonas. Dia após dia, a única coisa que se vislumbrava no horizonte era o próprio mar. É certo que alguns frente a essa situação enlouqueciam. Para manter a saúde mental e psicológica, a diversão e o entretenimento eram vitais, principalmente para os passageiros que não desempenhavam nenhuma função, além de dormir. Já os tripulantes, teoricamente tinham menos tempo, pois se dedicavam as suas funções.
     Os jogos, principalmente os de azar, destacavam-se entre as diversões á bordo.  Era bem freqüente, homens perderem nas cartas e/ou dados tudo que possuíam. Certamente e conseqüentemente estes jogos acabavam em desordens e conflitos, o que desagradava os oficiais e principalmente os religiosos.


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