“A epopéia portuguesa, retratada por Camões em Os Lusíadas, é a exaltação do povo português, seu espírito aventureiro e suas
conquistas. As descobertas são os reflexos da persistência e da vontade, que
inicialmente só pretendia chegar as Índias para comercializar especiarias e
ouro, e evangelizar os infiéis, mas que acabou mudando o mundo. Exaltados são
seus heróis, como Vasco da Gama, mais outros tiveram papel fundamental e muitas
vezes nem são tão lembrados. Vamos conhecer como era a vida nas embarcações
portuguesas, suas angústias, incertezas, e o modo sofrido com o que se desbravaram
os mares, desconstruíram mitos e impulsionaram a formação do mundo moderno.”
Boa leitura!
A partida de Vasco da Gama, Alfredo Roque Gameiro, 1947 , Biblioteca Nacional de Portugal
A
Viagem
Lisboa,
fins do século XV, foz do Rio Tejo. Vasco da Gama parte em direção ao
atlântico Sul com o objetivo final de chegar as Índias. Como ele muitos outros
de lá partiam, e em mente com uma missão: “conhecer novos mundos”, que ás vezes
não passavam de utopias. Porém o desconhecido, em breve ia ser desnudado pela
obstinação portuguesa. Um projeto de expansão de uma jovem e vibrante Nação.
As viagens tinham duração média de seis
meses, porém algumas expedições ficavam em torno de um ano e meio no mar se
fosse necessário. As condições de navegação mudavam continuamente, variando do
calor tórrido do Trópico de Câncer ao frio do extremo sul, na região do Cabo
das Tormentas, rebatizado de Cabo da Boa Esperança.
Na famosa evocação do "Mar Português" de Fernando
Pessoa , o poeta recorda o verdadeiro preço da expansão marítima.
"Ó
mar salgado, quanto do teu sal
São
lágrimas de Portugal!
Por
te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos
filhos em vão rezaram!
Quantas
noivas ficaram por casar
Para
que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se
a alma não é pequena.
Quem
quer passar além do Bojador
Tem
que passar além da dor.
Deus
ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas
nele é que espelhou o céu"
(Fernando Pessoa , Mensagem, 1934)
De
alto risco, as expedições sofriam todo tipo de imprevistos no mar: tempestades,
calmarias, motins e trágicos náufragos, além da fome e das doenças presentes na
tripulação, que serão comentadas posteriormente. Por vezes a água da chuva
invadia a embarcação. Calcula-se que 40% dos navios sequer chegavam aos seus
destinos, sendo que na época os naufrágios se tornaram a principal causa de
morte em Portugal.
Os
marujos
No
imaginário da época, o marinheiro era visto de forma geral, como um indivíduo da
pior espécie. Segundo relatos da época, entre os tripulantes dos navios
portugueses figurava todo tipo de gente: adúlteros, malsins, alcoviteiros,
ladrões, vadios e desobrigados, homens que matavam por dinheiro. Nas
embarcações também se faziam presentes condenados por crimes diversos, que
trocavam suas respectivas penas - muitas das vezes mortes por decapitação e/ou
enforcamento – pelos serviços no mar.
Além desses, uma parcela era formada
por crianças, que em certas viagens poderia corresponder a 10% da tripulação.
Alistadas pelos pais, os quais recebiam seus soldos, as crianças faziam os
considerados “piores trabalhos da viagem”, como costurar as velas, limpar os
excrementos, entre vários outros, sem contar nos constantes abusos sexuais sofridos
nos porões dos navios. Por fim, no período de expansão em direção ao cabo das
Tormentas, começa-se a observar a presença de escravos negros negociados no
litoral africano, o que anos mais tarde se tornaria uma constante na colônia
portuguesa na América: o território que viria a se chamar Brasil. Grande parte
da tripulação era de origem pobre, por vezes não tendo nem vestes apropriadas.
Muitos, de personalidade rude, se lançavam na empreita descontentes e iludidos com
a possibilidade de aventuras e enriquecimento.
A religião a bordo
“Se queres aprender a orar, entra
no mar”
Cercada
de mitos, lendas, buscas por reinos perdidos e com a cara de uma nova cruzada,
de espírito evangelizador e ao mesmo tempo mercantil, as navegações portuguesas
evidenciavam a influência e o enorme poder que a Igreja detinha sob a sociedade
portuguesa de fins do século XV. O provérbio acima confirma a incerteza e a
evocação da fé causada pela aventura marítima. Missas, terços e procissões eram
comuns na viagem, e se tornaram mais freqüentes ainda após a contrarreforma
católica e a criação da Companhia dos Jesuítas. Na verdade havia um certo
incentivo a manutenção de uma vida religiosa a bordo, visto que os perigos e a
possibilidade de morte na viagem eram uma realidade
As
tradições da Igreja eram cumpridas quase que a risca. Sextas-Feiras de
abstinência, suspensão da carne e consumo de peixe. Há relatos de procissões de
fé e de solenidades em que ocorria a cerimônia do “lava-pés”. As confissões
também faziam parte do cotidiano dos marujos. Ou seja, por missas, confissões,
procissões entre outras práticas católicas, esses missionários representavam um
alento espiritual aos tripulantes.
Alimentação
A
alimentação certamente consistia no maior problema das longas viagens
marítimas. Tudo começava antes da partida, já que os navios eram abastecidos de
forma insuficiente pelo Armazém Real, observando que a falta de gêneros era uma
constante em Portugal. Daí mais um dos fatores que impulsionariam a expansão: o
controle de novas regiões produtoras de alimentos. Escassos e armazenados nos
porões úmidos dos navios, estragavam já no início da viagem e seu consumo
associado aos péssimos hábitos higiênicos eram motivos de muitas perdas na
tripulação.
Entre os mantimentos levados na viagem
estavam:
biscoitos, carne salgada, peixe seco
(principalmente bacalhau salgado), banha, lentilhas, arroz, favas, cebolas,
alho, sal, azeite, vinagre, mel, passas, trigo, vinho tinto e água, sendo que
alguns alimentos eram mantidos em barricadas de sal com a finalidade de
conservá-los por longos períodos. As
embarcações também transportavam animais vivos, tais como: galinha, coelho,
carneiros, entre outros. Para o preparo dos alimentos, os navios costumavam
carregar 2 ou 3 fogões.
O acesso aos mantimentos era
rigidamente controlado, seja pelo “despenseiro”, seja pelo Capitão que os
distribuíam as tripulantes conforme o posto: os oficiais ficavam com os
suprimentos em melhor estado, enquanto os marinheiros pobres eram obrigados a
comer biscoito podre com baratas e com bolor fedorento e fétido, entre outros
elementos em estado acelerado de decomposição. Nas calmarias, quando a nau
poderia ficar horas ou dias sem se mover, sob o calor tórrido dos trópicos, os
marinheiros famintos ingeriam de tudo: sola de sapatos, couro dos baús, papéis,
biscoitos repletos de larvas de insetos, ratos, animais mortos, e até mesmo
carne humana. Muitos matavam a sede com própria urina, enquanto outros
preferiam o suicídio.
A qualidade da água era também muito
comprometida, pois geralmente eram poucas ou nenhuma escala para o
reabastecimento. Á partir da conquista de novas terras e contatos com outras
culturas, pouco a pouco a alimentação nos navios foram mudando, graças á
assimilação de novos gêneros e hábitos, porém o processo foi lento.
Condições
de Higiene
As condições de higiene a bordo eram as
piores possíveis, e o espaço para acomodação da tripulação era muito restrito.
Nas viagens eram levadas água-de-flor e ervas aromáticas com a intenção de
disfarçar os odores nauseantes. A má higiene costumava contaminar os alimentos
e a água, e nas pessoas e nos alimentos proliferavam todos os tipos de parasitas:
piolhos, pulgas e percevejos, além de ratos e baratas. No ambiente o banho era
impensável e impossível devido á insuficiência de água, utilizada somente no
preparo de alimentos e na hidratação, e não havia
banheiros nos navios sendo que os viajantes recorriam a pequenos assentos pendurados
sobre a amurada dos navios. Ninguém se lavava, pois o banho era considerado
nocivo à saúde. Confinados em
cubículos, passageiros satisfaziam as necessidades fisiológicas, vomitavam ou escarravam
próximos de quem comia - quando não sobre - o que era considerado comum a bordo
da embarcação.
Doenças
A fome crônica e a
debilidade física colaboravam para a morte de uma parcela significativa de
marinheiros, somando-se ao fato que a falta de higiene básica, contribuía para
transmissão de agentes patológicos de vários tipos. Casos de febres altas e
delírios são comumente relatados nos diários de bordos da época (na maioria das
vezes decorriam da ingestão de carnes muito salgadas e podres, regadas á vinhos
avinagrados).
Os longos períodos no mar, privavam o acesso dos
marinheiros aos alimentos que continham vitaminas. A vitamina C era ausente ou
insuficiente na alimentação, e os marinheiros ficavam doentes já nos primeiros
meses da viagem: as gengivas inflamavam, e iam “apodrecendo” o que produzia um
hálito muito desagradável. Os dentes caiam, apareciam feridas e hemorragias nas
mucosas e peles, logo se transformando em um caso de anemia, e o posteriormente
viam a falecer. Tal enfermidade é conhecida como escorbuto. Conhecida como “mal
dos marinheiros” era a doença mais temida e repulsiva no cotidiano dos marujos,
causando alta mortalidade. A falta de informação sobre as causas da doença
permaneceu até meados de 1653 quando James Lind, médico naval escocês observou
e constatou que o consumo de laranjas, limões e limas evitava o escorbuto.
Sobre a doença, Luís Vaz de Camões,
retratou-a em Os Lusíadas:
"E foi que de doença crua e feia,
A mais que eu nunca vi, desampararam
Muitos a vida, e em terra estranha e alheia
Os ossos para sempre sepultaram.
Quem haverá que sem o ver o creia?
Que tão disformemente ali lhe incharam
As gengivas na boca, que crecia
A carne e juntamente apodrecia."
(Canto V)
Outra enfermidade comum era a beribéri, uma
doença causada pela falta da vitamina B1 ou tiamina na alimentação, que causava
extrema fraqueza, problemas digestivos e atrofia progressiva dos nervos longos,
dos músculos da perna e dos braços e edema (fruto da insuficiência cardíaca). Não
tão comuns, mas registradas em alguns relatos, encontram-se casos de peste, cólera,
paludismo, febre tifóide. Havia também inúmeros casos de depressão e outras
doenças psiquiátricas.
Distrações
na monótona vida marítima
Costuma-se acreditar - equivocadamente - que
as viagens portuguesas rumo ao desconhecido eram cercadas de aventuras e
emoções, porém, essas na verdade eram monótonas. Dia após dia, a única coisa que se
vislumbrava no horizonte era o próprio mar. É certo que alguns frente a essa situação
enlouqueciam. Para manter a saúde mental e psicológica, a diversão e o
entretenimento eram vitais, principalmente para os passageiros que não
desempenhavam nenhuma função, além de dormir. Já os tripulantes, teoricamente
tinham menos tempo, pois se dedicavam as suas funções.
Os jogos, principalmente os de azar,
destacavam-se entre as diversões á bordo. Era bem freqüente, homens perderem nas cartas
e/ou dados tudo que possuíam. Certamente e conseqüentemente estes jogos
acabavam em desordens e conflitos, o que desagradava os oficiais e
principalmente os religiosos.
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caminhosdahistoria@hotmail.com
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